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Viver ao vivo e a cores

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 19 de mai. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 26 de mai. de 2020



Fui buscar o A. ao trabalho, coisa que não acontecia há mais de dois meses. Ir buscar o A. ao trabalho significa que é sexta-feira, que eu não estou de urgência no fim-de-semana e que o temos livre para ir ao Porto, Lisboa, Madeira ou a outra escapadinha qualquer. Mas esta foi uma sexta-feira especial – aquela em que eu ia poder estar com parte da minha família desde que ficámos todos sem chão, com medo do desconhecido e da incerteza. Desde que ficámos com receio pela vida daqueles de quem mais gostamos e até pela nossa própria. Desde o dia em que fomos todos separados e enclausurados nas jaulas das nossas próprias casas.


Esperavam-nos quatro horas de viagem e nunca vamos propriamente com vontade de a fazer. E não foi diferente desta vez. Mas sentia uma necessidade grande de poder olhar para a minha mãe, irmãos e avós e saber que estavam bem.


Salto para o lugar do pendura, entra o A. no lugar de condutor e seguimos viagem. Paragem rápida no Porto para abastecer e para fazer uma mala para o B. que está na ilha e que tão cedo não volta. Seguiram-se horas de conversa, música e um céu em constante mudança. Começou com chuva, torrencial por períodos, que o limpa-pára-brisas tinha dificuldade em conseguir manter livre a visibilidade; depois os arco-íris - não sei se um ou vários, mas sei que nos acompanharam ao longo de quase todo o restante percurso com as suas 7 cores a pintar o céu em arco. Quase no final, as nuvens coloridas de vários tons de laranja e rosa e eu a sentir uma certa tranquilidade, como se o mundo nos estivesse estado a transmitir que vai de facto correr tudo bem.


Já era noite. E eu tinha uma surpresa a fazer. Os meus irmãos compinchas. Chego e estaciono o carro ao lado da casa da minha mãe. Vejo a M. a correr para vir ter connosco e assistir. Vou à porta. Ali estava ela, virada de costas para a porta, mesmo no centro da sala.


Truz, truz, truz. Um revirar com um salto, com um primeiro olhar arregalado e surpreendido que vai buscar de seguida o sorriso que vem devagar e depois explode de felicidade. A porta abre-se e é preciso controlar aquele instinto de saltar para os braços da mãe num reencontro caloroso. Mas para já, sinto a necessidade de manter o distanciamento para segurança dos que a mim me são queridos. E por isso foi de longe que se imaginou o abraço, de sorrisos no rosto.


Depois foi tempo de surpreender os avós. O avô lá em cima no mezanino, a tentar identificar o ser escondido por detrás da máscara em contraluz na escuridão. Silêncio. Já tinha identificado, mas tentava assimilar a informação. “A nossa Carolina aqui!”. Vem a avó. Trocas de palavras de saudade da porta de casa no andar de baixo para o mezanino lá em cima. E assim se comunica a uma distância que está tão próxima.


Ficámos a dormir numa das casas que estava pronta para o alojamento local que ia ser iniciado em março. Assim estávamos mais à vontade e sem o peso na consciência de poder estar a contaminar algum espaço comum. Vimos o último live do Bruno Nogueira com um copo de vinho na mão e assistimos história em direto.


Na manhã de sábado, abro a porta e tenho um saco de pão caseiro fresco lá pendurado. Este meu avô. Está uma belíssima manhã de sol. Oiço o relinchar dos cavalos nas boxes e observo as cores das buganvílias que decoram o pátio da frente.


Vou ter com a minha mãe e com a M. para tomar o pequeno-almoço no terraço. Elas numa ponta e eu noutra, numa mesa individual. Entre o chilrear dos pássaros, o abanar das folhas das árvores, a companhia da Sasha e do Balu e a brisa fresca que traz os cheiros do ar puro do campo, conversámos durante largas horas a comer panquecas com doce de ameixa.


Sábado e Domingo foram semelhantes, com a chegada do T. no Domingo para completar o ninho de três. Refeições feitas no jardim, mesas separadas e espalhadas. Avós debaixo da árvore à sombra, com o seu copo de vinho branco Quinta do Boição a acompanhar. Estendidos no relvado durante as tardes até ser de noite, entre conversas e mais conversas, sorrisos e música. Assistir à guitarra e às cantigas cantadas, que tantas vezes ouvi por entre ecrãs nos últimos meses. Os versos e as histórias do avô. As conversas políticas e filosóficas da avó. A cumplicidade com os irmãos. A companhia dos primos. O colo da mãe. E o A., que na ausência da sua família, acompanhou a minha.


O tempo passou lentamente, com cada segundo a ser aproveitado, somente por estar. Foram vistos os sorrisos, ouvidas as vozes, olhados os olhos e sentidos os cheiros. Ficaram por se dar os abraços e serem dadas as mãos.


Hora de partir. Céu azul de sul a norte, cegonhas em bando a sobrevoar os prados. Chegada a Viana no crepúsculo, com o Santuário de Santa Luzia a se fazer destacar ao longe ao atravessar o Rio Lima.


Este não foi o período mais longo que tinha estado sem ver alguém da minha família, de todo. Habituamo-nos a estar longe a partir do momento em que saímos de casa aos dezoito anos para vir estudar para a Faculdade. Faz em setembro dez anos que o fiz. Mas nunca tinha sido tão difícil a distância, nem no meu primeiro ano de caloira. A incerteza de quando e se os veria de novo, se estariam e ficariam bem. Sabia que se tinham uns aos outros e que têm a sorte imensa de poderem estar a conviver em segurança num espaço amplo e a meio da natureza, onde se sentem todos em casa. Mas a vontade de cuidar e orientar os que me são próximos, de estar lá presente para o caso de alguma coisa correr menos bem e a obrigação de o fazer para os outros tão longe, apertou-me o coração todos os dias.


Mas hoje estou de coração cheio. É verdade que os ecrãs encurtam a distância, mas não colmatam a saudade de viver ao vivo e a cores. Bem-dita a hora em que decidi ir, estar, ver e sentir os meus de perto. Ficam por dar os abraços, que vão ser apertados e longos, bem como eu gosto, numa próxima. Fica a vontade do regresso à nossa ilha, para ver e estar com os outros tantos que nos estão em falta, logo que possível e com esperança de que para breve.

 

Diário de uma pandemia 1905.2020

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