Que venha o sol.
- Carolina Germana
- 13 de abr. de 2020
- 4 min de leitura

Faz hoje uma semana. A noção do tempo, dos dias e das horas, está estranhamente difícil de decifrar. Alguns minutos demoram mais que outros. Mas as semanas passam a correr. E assim estamos há um mês, numa luta contra o tempo passado, a tentar arranjar uma razão para estar neste presente, sem poder fazer planos para o futuro incerto.
Faz hoje já uma semana, que a minha irmã me ligou ao final de um dia particularmente difícil, estava eu na varanda da minha casa em Viana do Castelo e ela de pernas cruzadas no relvado à frente da casa dos avós, em Bucelas.
Ela chegou de São Paulo há quase um mês. Foi para a quinta dos meus avós, onde entretanto se juntaram também a minha mãe, irmão e primas. Cada um deles cumpriu os seus 15 dias de quarentena em espaços fechados e longe dos avós, para não correr riscos.
Há uma semana, saídos da “clausura”, reuniram-se todos no relvado em círculo, mantendo de qualquer forma distâncias de segurança, sem abraços ou beijinhos. A minha irmã ligou-me. E lá estavam eles lá e eu aqui a apreciar mais um fim de dia de sol. Ficámos horas à conversa e consegui ver as carinhas de cada um através do ecrã, a rir, a contar piadas e a ouvir histórias. Quando o sol começou a desaparecer, o som das cordas da viola começou a fazer-se ouvir e todos começaram a cantar. Nenhum deles é particularmente bom a cantar, nenhum tem uma voz sonante. Mas aquela junção de vozes familiares nunca me soou tão bem. E uma música atrás da outra, cantava e dançava eu deste lado também, a querer juntar-me à banda.
Este sítio mágico onde eles estão todos reunidos, existe desde que eu me lembro de mim. Um sítio que foi palco de muitas vivências ao longo da juventude dos 3 filhos e da infância e adolescência dos 8 netos dos avós.
Lá se festejaram nascimentos, casamentos e aniversários. Lá se recebem amigos e familiares de cada um de nós, sempre de braços abertos e com oferta de um copo de verdelho à chegada. A porta está sempre aberta, não se fecha o trinco, porque pode chegar mais um, ou dois ou três, para se sentar à mesa do almoço de sábado.
Lá se passaram verões inteiros, a fazer peças de teatro, espetáculos de dança, desfiles "de moda". A brincar, a correr, a saltar, a jogar ténis, ping-pong ou bilhar. Leram-se livros, viram-se filmes. O avô levou-nos ao jardim zoológico, à feira popular e ao oceanário. Contou-nos histórias da sua infância, sobre o leão e sobre a guerra. A avó levou-nos em longas conversas sobre a relatividade da vida, sobre o importar com o outro, a pensar antes de falar, a não guardar rancores, a não medir e a sermos responsáveis pelos nossos atos.
Lá se fazem bolos de iogurte e de bolacha. Fazem-se croquetes a enrolar carne no pão ralado no balcão da cozinha. Faz-se doce de ameixa e de amora. Tiram-se laranjas das laranjeiras e nêsperas das nespereiras. Lá se toma o pequeno almoço de mesa posta e cheia todos os dias, com um toque especial ao Domingo.
Lá aprendemos regras, em torno da mesa redonda. Desde cedo a contribuir nas tarefas diárias, a pôr e tirar a mesa em equipa, a lavar a loiça a cantar, a ajudar a limpar e a arrumar.
Por lá passou a Brega e o Cuchi. Agora a Sasha e o Balu. Verdadeiros companheiros de caminhadas, de abraços e brincadeiras.
Por lá passaram o Tirol, a Elfe e o Ticoli. Agora o Ice Cube e o Lorde deixam-se estar nos prados, passeiam nas vinhas e saltam no picadeiro. E enchem o coração ao nosso avô.
Neste sítio crescemos, aprendemos, criámos relações para a vida. Todos temos uma ligação muito próxima com este cantinho do céu, que hoje é palco de clausura há quase um mês.
O avô não pode ir mais a Lisboa ter com os amigos, nos seus almoços diários, já não pode ir passear para a baixa ou ir ver provas de equitação. A avó não pode mais receber e ter conversas intermináveis à mesa com quem gosta de debater os mais variados assuntos.
Mas têm a sorte de estarem num espaço amplo, envoltos em natureza, rodeados por alguns filhos e netos, que na distância de segurança e com cuidados acrescidos, fazem sempre companhia. Outros muitos avós estão em apartamentos pequenos em meios urbanos, sem poderem circular na rua, sem qualquer contacto com familiares que os querem proteger, e que têm dificuldade em entender esta reviravolta que a vida lhes deu aos 75.
Têm sorte os nossos avós e temos nós sorte em tê-los e em ter este santuário que acolhe nos bons e maus momentos e que se mantém tão cheio de vida.
E foi ao som da Carta dos Toranja, que todos juntos nos despedimos do céu laranja, que se tornou rosa, violeta e finalmente azul. E eu rendi-me àquela sensação boa de saber que estão bem e unidos. A vê-los serenos e divertidos. Grata por ter esta tecnologia que nos permite que os que estão longe se sintam perto. Que permite participar sem estar presente. E assim fui capaz de viver com eles este momento naquele espaço tão nosso, nestas circunstâncias tão únicas.
E depois daquele dia que começou com ansiedades e angústias, de coração apertado e triste, acabei com uma paz e tranquilidade imensa, com um reabrir de olhos para aquilo que realmente importa. Para as pessoas que realmente importam. Com uma alegria inexplicável e uma gratidão enorme por ter e ter tido a oportunidade de viver esta vida e de ter estas pessoas à minha volta. E com todas as suas perfeições e imperfeições, que família boa é esta que me trouxe de volta a mim e me encheu de novo o coração.
E este foi o último dia de sol da semana que passou. Foi o último dia em que se reuniram todos sentados no relvado a sentir o sol cair, de guitarra na mão e a cantar até anoitecer. Por enquanto esperamos que este futuro incerto nos traga mais momentos como este.
Muitos mais.
E que venha o sol.
Diário de uma pandemia. 10.04.2020
Comments