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O regresso ao (a)normal

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 4 de mai. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 26 de mai. de 2020



O regresso ao (a) normal


Já me perdi nos dias. Ainda ontem estávamos em pleno inverno e hoje soprou um vento quente e o sol queimou lá fora. Passaram-se dois meses desde que isto tudo começou e nem sei por onde começar.


Ansiosos por voltar à vida corriqueira de sempre, o que corre é que “vamos regressar à normalidade”, como se os últimos tempos tivessem sido apenas um standby nas nossas vidas. Temo que não tenham sido dias suficientes para se passar a mensagem e que a mensagem não tenha sido bem entendida. Que vivemos uma pandemia. E não, não é daquela que lemos nos livros de história ou que aparecem nos filmes. Nós somos todos figurantes neste cenário. Hoje, agora. Passou da ficção à realidade e estamos, infelizmente, a vivê-la na nossa passagem curta pela vida.


Estou preocupada. Porque isto ainda só começou e já se esqueceram.


O estado de emergência foi ativado 15 dias após o primeiro caso em Portugal. Ainda não aprendemos a (con)viver com o vírus lá fora e já se sonha com a ida ao café, jantaradas com amigos, beber uns copos, ir ao restaurante, reunir família num banquete em casa,… Compreendo. Também tenho saudades.


Mas estou preocupada. Temo pelo uso incorreto de máscaras, pelo uso indevido das luvas, pela falta de higienização das mãos e pela má utilização das viseiras. Temo pelo incumprimento do distanciamento social, que deve ser mantido, apesar do levantamento das medidas.


Temo pelas pessoas e por não terem sido dias suficientes.


Estou preocupada porque, independentemente das teorias da conspiração, de quem “começou”, se foi feito em laboratório, de quem agiu mais cedo ou mais tarde, do impacto em números aqui ou ali, a pandemia não foi embora com um estalar de dedos. Sei que o vírus está cá e que ocupou camas de Hospital, encheu Cuidados Intensivos, mudou atitudes e práticas de todos os profissionais de saúde. Que mata, novos e velhos, saudáveis e doentes crónicos. Se podia ter sido pior? Podia. Por alguma razão não foi. Pensemos nisso.


Em nada as teorias nos ajudam a agir e reagir, a mantermo-nos informados e essencialmente, a nos protegermos e protegermos o outro.


Estou preocupada com este braço de ferro que teimam em querer jogar e a querer ganhar a todo o custo: saúde versus economia; saúde versus turismo; saúde versus setor empresarial. E esquecem-se que se resume a um só braço de ferro: pandemia versus tudo o resto. Preocupa-me a necessidade de gritar bem alto para chamar a atenção, porque o desvio da atenção para a saúde “vai matar mais”.


Não sei quem vai matar ou magoar mais. O desemprego, a fome, a doença em si ou todas as outras. Mas em vez de nos dividirmos e medirmos forças e fraquezas, secalhar está na hora de nos unirmos para que o impacto seja o menor possível em todos eles, e não a ignorar o óbvio. Fomos afetados por uma pandemia. Mais ou menos mortal, é uma pandemia.


Enfim. Já me perdi nos dias e nas palavras.


Só posso de facto falar daquilo que sei e do que vivi. E o tempo aqui passou depressa. Num piscar de olhos, a saúde teve de ser reforumular e reinventar – em dias. Teve de se adaptar à rápida propagação e transmissão dum vírus desconhecido. Há 2 meses que não paramos. Foram muitas as discussões, reuniões, remodelações e decisões. Num turbilhão sem fim de emoções, tentávamos perceber o que se passava e ao mesmo tempo tínhamos de conseguir agir, já, agora, no imediato. Foram muitos os artigos, normas e recomendações que se leram várias vezes por dia para podermos trabalhar. Atualizações ao minuto para conseguir agir, apoiar, cuidar e salvar. E estamos cansados. Cansados do trabalho, das burocracias, dos colegas e das constantes mudanças. Estamos cansados de casa, do isolamento e do confinamento. Cansados de tentar proteger os nossos de longe. Foram muitas noites mal dormidas, de muito suor, angústia e ansiedade.


E estamos cansados hoje, porque já se esqueceram.


Não acho que tenham sido dias suficientes para preparar para a novidade, para o desconhecido, para o diferente. Não acho que as pessoas estejam conscientes de que não se deu luz verde para se passar a conviver, a trabalhar e a estar como dantes. Nós continuamos vulneráveis, todos. E vamos ser naturalmente afetados, direta ou indiretamente.


Se isto tudo vale apena? Ninguém nos vai responder a esta pergunta. A única coisa certa que temos é que ninguém escreve linhas do futuro.


Temos a ciência e esperança a que nos agarrar. A ciência estuda-se, prevê-se e baseia-se em probabilidades. Sorte a nossa que temos múltiplos peritos em equipas multidisciplinares que dedicaram uma vida para nos conseguir orientar num momento tão delicado como este. Custa-me que se questione e que se julgue as entidades superiores que o tentam fazer com o que sabem e com o que se vai descobrindo com o tempo e investigação. Que se desacredite e que se ignore as suas recomendações. Este loop sem fim de desconfiança nessas entidades levam-nos a procurar de forma sedenta, outras teorias que possam justificar o que não se conhece. E de repente vejo a gente a acreditar nos dogmas de indivíduos que de forma isolada lêem uns artigos, tiram as suas conclusões e debitam nas redes sociais. Parece-me demais.


Preocupa-me a discussão dos números e de nos acharmos exemplo para algo ou alguém. Não se discute medicina nem saúde com números. Há vidas biopsicossociais por trás de cada número. Há sequelas, complicações e influência na qualidade de vida. São pessoas. E uma coisa é certa: com mais ou menos, ninguém vai sair vencedor.


Independentemente das medidas instituídas, das orientações e normas, do impacto na saúde, na economia e no turismo, os prós e contras de tudo isto vão continuar a ser debatidos durante os próximos anos. Talvez só quando se escreva história é que vamos perceber melhor o passado. Se vamos olhar para trás com alegria pelas conquistas ou com tristeza pelas perdas, com agradecimento pelas medidas instituídas ou com desdém pelo tempo perdido, ninguém sabe. Mas parece-me lógico que o caminho é seguir é o de seguir as orientações de quem mais depressa saberá.


E engane-se quem ache que voltamos ao normal. Porque o mundo mudou.


Mudaram as relações e a forma de estar. A forma de aprender e de ensinar. De conviver e de ser.


A parte positiva: somos seres humanos. Temos uma capacidade incrível de adaptação, de reinvenção e criação. Foquemo-nos nisso e trabalhemos JUNTOS.


Teremos de voltar naturalmente a conviver mais com os que nos são próximos. Família, amigos. É essencial manter as relações, porque faz parte da nossa essência. Mantenhamos o necessário, esqueçamos o extraordinário. Vamos reunir com menos amigos, mas aumentar o tempo de qualidade com cada um, em encontros pequenos, ao ar livre. Vamos estando com a família, com uns mais longe do que perto. Reinventamos formas de mostrar afeto, carinho e companhia. Usemos máscara. Protejamos os mais vulneráveis.


Vamos viver num mundo novo. Aprendamos a fazê-lo com responsabilidade neste regresso ao (a) normal.


Isto não foi um standby. Foi uma troca de cenário. Não deitemos tudo a perder.

Diário de uma pandemia 04.05.2020

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