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Meia noite e catorze

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 25 de jun. de 2023
  • 4 min de leitura

Meia noite e catorze. Nasci como mãe com o nascimento do meu filhote. Depois de dezasseis horas em trabalho de parto não evolutivo, acabei a dar entrada no bloco operatório na noite de 24 de outubro de 2022 para uma cesariana. Estava tranquila, apesar das dores, porque já só queria terminar aquela espera e conhecer o meu bebé.


A cesariana em si foi um momento estranho. Entrar no bloco operatório, desta vez do outro lado, deixou-me um pouco mais ansiosa. Talvez por saber na teoria tudo o que pode correr menos bem, talvez pelo ar gélido que há sempre na sala. Pela agitação da preparação do material, da chegada dos profissionais necessários para o processo, pela espera ansiosa da chegada do meu marido para me segurar a mão. -"Por favor, não comecem sem ele estar presente", pensava eu de mim para mim. Mal o vejo entrar no bloco, respirei fundo de alívio. "Vamos a isso!".


Nesse instante, abriram-me.


Os minutos que se seguiram foram tudo menos bons. Talvez os piores das últimas horas desse dia, embora não sentisse dor propriamente dita (como tinha sentido com as várias contrações que se antecederam àquele momento). A sensação de ser mexida dentro do nosso corpo, com a agressividade com que eu sei que é feita uma cesariana, é do além. É como se estivéssemos a viver algo que não é nosso, sendo. Não sentimos a dor, mas sentimos o remexer, o puxar, a pressão.


Parecia que me estavam a rasgar aos bocados, de um lado e do outro. Que me iam dividir a meio. Via tudo a andar à roda.


Apetecia-me vomitar. Dão-me medicação. O A. tentava distrair-me a fazer o jogo do polegar. Olhava para ele, com uma névoa à frente. Tentava abstrair-me do facto de estarem no corte e costura no meu corpo e que lá dentro estava um recém-nascido prestes a ser retirado de dentro de mim.


- "Está preso" - "Tem o cordão à volta do pescoço" - "Precisamos de ajuda", dizem as obstetras.


Olho para a anestesista que está ao meu lado, que mergulha sob o pano à minha frente e se atira para cima do meu esterno e costelas com o que para mim pareceu ser a força de um elefante, deixando-me sem respirar. Foram segundos que senti que ia apagar e não voltava mais. Cerrava os olhos a concentrar-me para não me deixar ir. Estava quase a ver o meu bebé.


Não podia desistir agora.


Já saiu. Eu senti. Senti o vazio. Mas não ouvia choro. Segundos ou talvez milésimos de segundo que me pareceram uma eternidade. Até que oiço o som da vida. O som do meu filho. Só o queria ver. Trazem o meu bebé até mim, pousando-o no pouco que havia a descoberto do meu peito do lado de cima do pano que me impedia de olhar a carnificina que estava do outro lado.


Olho para ele e está de olhos bem abertos, tranquilo. Choro. De alívio. Foi a sensação que primorou naquele instante. Aliviada de ter terminado a espera, de ter acabado todo aquele sofrimento, de eu ter conseguido chegar ao fim, de ele estar bem. De o meu bebé estar bem. Levam-no para o aquecer e vestir, sempre sob o meu alcance de visão. Mas não conseguia estar lá, estar perto. "A., vai lá vê-lo! Vai lá estar com ele!", digo eu ao meu marido, que acredito ter ficado com um misto de sensações a querer garantir que também eu estava bem. Eu estava bem. Estava ótima. Já tinha acabado e já tinha o meu bebé cá fora.


As horas que se seguiram foram simples para mim. Estava muito segura do meu papel naquele momento. Estava muito presente. Olhando, adorando, cheirando, tocando e admirando o meu filho. Observando-o a descobrir o que é isto de estar cá fora neste mundo, abraçando-o para que se sentisse seguro no meu peito, deixando-o chegar até à maminha, confiante de que era tudo o que ele precisaria.


As minhas dores passaram a ser secundárias naqueles dias na maternidade. Quase já nem me lembro delas. Sei que as tive. Com o levante, com o movimento, com o tomar um duche, com as idas à casa de banho e a dificuldade que era simplesmente fazer um xixi. Nem a dor a amamentar se está muito presentes nesses dias, acentuando-se nos dias que se seguiram já por casa.


Estava muito focada em olhar para e pelo meu bebé e dar-lhe tudo de mim. Esteve pendurado em mim, colado a mim durante esses primeiros dias.


A memória que ficou foram as horas que passei a tentar que me caísse a ficha, de sorriso na cara enquanto olhava para aquele pigmeu de pernas encolhidas a mexer-se em câmara lenta, de olhar doce e atento. Mal sabia eu que ainda ia durar uns meses desta dificuldade em cair na real - de que era mãe deste meu bebé.


Meia-noite e catorze do dia 25 de outubro.


Já me caiu a ficha, filho.


São oito meses de ti, contigo e para ti. Oito meses de um amor que faz explodir o coração, que faz o ar mais pesado e difícil de respirar. E um tempo que agora parece andar a correr.


Pausava aqui, agora.

 

Conversas de sesta 25/06/2023

 
 
 

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