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Hoje finalmente parei.

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 13 de abr. de 2020
  • 5 min de leitura


Hoje finalmente parei.


Ainda não tinha parado para pensar e refletir desde que a doença Covid-19 entrou no nosso país há 15 dias. Ontem estive 16h de urgência com muitas emoções, a vestir e despir fatos e equipamentos, a ficar horas sem respirar direito, beber ou comer. O fluxo de doentes está estranhamente calmo para esta época do ano na Pediatria. As poucas vivas almas que aparecem, aparecem em último recurso e por isso potencialmente em estado mais grave. Saber isto e ter a noção de que é apenas o recuar de águas antes do tsunami surgir, ainda aumenta mais a ansiedade.


Mas hoje não. Hoje consegui ter umas horas para parar. Para falar com amigos e família, para ouvir música e para ler algo que nada tivesse a ver com o tema. Os últimos 15 dias têm sido uma correria tal de discussões, reuniões, encontro de soluções e tomada de decisões. De reestruturação, de planeamento, de mudanças e incertezas diárias. Num ambiente de tensão, de dúvidas, de olhares perdidos. De medo de ficar infetado e de estarmos a levar para casa e contaminar o nosso cantinho sagrado, as nossas famílias, os nossos mais que tudo. Uma correria para estarmos em constante atualização, com informação nova a cada 12h para vir reformular tudo aquilo que tentámos aprender nas 12h anteriores. E depois muda tudo outra vez. O ritmo a que chega informação da China, de Itália, do nosso país vizinho.. das entidades mundiais e nacionais de saúde, é impossível de acompanhar e de ficar indiferente.


A constante necessidade de atualização para conseguirmos... Trabalhar. Cuidar e tratar das nossas crianças, adolescentes, dos seus pais e avós. De pensar e saber o que dizer, como orientar, quem isolar, como tratar. Diariamente, a nossa mente é bombardeada com conhecimento em constante mudança para aprender e aplicar ao minuto. Minuto esse que vai tratar alguém, melhorar a qualidade de vida e eventualmente salvar uma.


Tenho o meu coração a bater a mil por estar finalmente a escrever o que sinto. Parece que estive anestesiada por uma adrenalina nunca antes sentida na vida. E hoje sinto e olho à minha volta.


As cidades que há um mês enchiam de gente de todas as cores e feitios, estão vazias. As ruas por onde o carro não anda em horas de ponta, estão vazias. Os supermercados estão sem bens e há fila de espera para o talho com distâncias de segurança. Vejo as pessoas ansiosas de um lado para o outro, a não tocarem nas superfícies, de luvas e máscaras, a andar rápido para se voltarem a fechar nas suas casas, com medo no olhar. Um cenário de guerra sem tiros. Um campo de batalha sem soldados ou armas.


Começo-me a aperceber que sinto falta. Do abraço, de dar a mão, do beijo, do "Hi5". Do convívio, do brinde, do barulho num restaurante.


Apercebo-me do tempo. Para onde é que ele foi e o que fiz com ele? Esse tempo que corre mais depressa do que nós. Aquele que dá para esperar por amanhã, para o mês que vem. Ah não... Para o ano dá, não há pressa.


Para o ano dá para fazer a viagem, para estar mais vezes com os amigos e família. Para tirarmos aquele fim-de-semana de pausa que planeamos há meses para subir à montanha, para fazer mergulho, para ver um filme, para comer pipocas, para dormir até tarde.


Dá para fazer aquelas coisas que me dão prazer... depois. Mais tarde. De escrever, de tocar piano, de tirar fotografias, de viajar, de fazer caminhadas na natureza, de me aventurar, de me desafiar, de criar. De abraçar. Às vezes até me esqueço de abraçar..


Mas dá para esperar pelo próximo fim-de-semana. Aí sim vai dar para conviver e beber uma cerveja com os amigos. De ir dançar. Gosto tanto de dançar. De reunir amigos e familia e preparar um banquete.


Oh não. Afinal não dá para esperar. Agora não dá. E o tempo.. ele corre. E nós vamos atrás sem fazer dele aquilo que queremos. E agora, quando? Não sei.


Ao refletir sobre o "quando", apercebo-me que por um lado, o facto de estar longe da minha família desde que saí da Madeira e vim estudar para o Porto em 2010, e depois das mil e uma voltas que todos os elementos deste núcleo já fizeram pelo mundo, e de continuarmos todos unidos e presentes na vida uns dos outros, faz-me viver este distanciamento com maior naturalidade. A videochamada já está aqui instituída há anos e parece tudo igual. Mas depois de pensar, não deixo de sentir angústia pela incerteza do que lhes poderá acontecer sem eu poder lá estar, se estão bem e confortáveis e saber que estão ansiosos, como todos, e de não poder lá estar. E rapidamente a distância habitual me parece maior ainda. E não posso de todo lá estar, para cuidar dos outros, longe. Não é fácil orientar e informar sobre aquilo que eu pouco sei mas que sei que bom não é. De dizer que têm de ficar em casa e acabar com a vida como a conheciam até então. Ter de insistir com os avós a ficar longe dos filhos e netos, a mãe a não trabalhar com estrangeiros, o pai a se proteger no trabalho no hospital, o irmão a não sair para convívios com os amigos, a irmã a voltar da América do Sul rapidamente. E sei que estão preocupados comigo também.


Não é fácil estar isolado e ficar em casa confinado a quatro paredes. Começam os casais a discutir, os filhos a berrar, as ideias a falhar. Algumas pessoas estão mesmo sós. É um verdadeiro desafio. E algo nunca antes vivido. Mas é um mal por um bem maior. E tenho ficado surpreendida, incrédula às vezes, e deixa-me feliz e inspirada esta partilha e capacidade incrível de adaptação e reorganização de rotinas que todos temos. Teletrabalho, concertos, jogos online, videochamadas de grupo, desafios em cadeia. Uma onda de criatividade e de solidariedade paira por todo o lado. E acho que temos mais é que viver este momento que nos foi dado da pior forma, mas aproveita-lo da melhor. Tempo para parar, pensar e eventualmente aprender. Porque a vida depois disto não vai ser a mesma.


Bom, e o tempo continua a correr. Sei que neste momento é para isto que existo. Para fazer a minha diferença em tempos de guerra. Cá estou e sigo. A meio de incertezas, de angústia, de ansiedade e de noites mal dormidas, vence o sentido de missão, de compromisso, de objetivo e de esperança por dias melhores.


E tenho sorte.


Tenho sorte de ter alguém que está aqui à minha espera quando chego cansada, depois de tomar um banho e de aliviar um pouco a parte de mim que vive cheia de medo de transmitir doença, e render-me à outra parte de mim aliviada por ter alguém com quem conversar, trocar impressões, que me distrai e me diverte. Que quase me obriga a descansar e a fazer coisas de que gosto quando estou na minha pausa, que me ajuda a manter-me mais "eu" no meio deste caos, para amanhã poder dar mais de mim. Porque difícil é estar só.


E vocês continuem, insistam no isolamento, não desistam, não desanimem.. por vocês e por nós todos que continuamos a tratar, a cuidar, a limpar, a transportar, a fornecer alimentos, a vender medicamentos e todos os que, para que todos sobrevivamos, continuam a trabalhar no terreno.


Temos de acreditar que vai dar tudo certo num amanhã incerto. Mas que nos abraçaremos todos amanhã.

 

Diário de uma pandemia - 19.03.2020

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