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Hoje estou aqui.

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 13 de abr. de 2020
  • 3 min de leitura


Hoje estive a trabalhar.

Hoje vi um adolescente de caracóis em fase terminal de uma doença complexa.

Hoje vi uma bebé chamada Luz, saudável, com uma das muitas infeções banais da primeira infância.

O olhar dele vazio, com medo e sofrimento. O olhar dela atento, vivo e curioso.

Ele com receio de qualquer aproximação ou intervenção. Ela sem medos, a tentar decifrar o olhar de quem está por detrás do fato de astronauta.

Ele só queria ser deixado estar. Ela queria colo e brincadeira.

Por um lado a incerteza, a impotência, o medo, a dor, o sofrimento, a tristeza, a doença e a morte.

Por outro a curiosidade, a inocência, a aventura, os sonhos, a esperança, a alegria e a vida.

Deixa que pensar...

A incerteza do tempo que temos para cá ficar é quase tão certa como a própria morte.

Hoje vestia uma viseira com um arco-íris que dizia "vai ficar tudo bem".

Vai, para alguns. Para outros, não.

E mais do que ficar tudo bem, importa que quem fique se lembre do que é cá estar. E do que é importante enquanto cá estamos. Do cuidar e olhar pelo outro, de aproveitar e agarrar as oportunidades que a vida nos dá, de nos aproximarmos dos nossos familiares e amigos, de abraçarmos mais, de chatearmos menos, de explorar, de criar, de se deixar sentir, de escutar. Importa que nos lembremos que isto de viver é passageiro e o que queremos fazer com a nossa passagem - qual o nosso propósito?

Por nós e por todos aqueles que não têm oportunidade de lutar pelos seus sonhos, ou de fazê-los acontecer. Por todos os que sofrem e que, ainda assim, não deixam de sonhar, de sorrir, de ter esperança e de nos ensinar.

Eu hoje não estaria aqui.

Hoje são os anos do meu pai, que está na ilha. Hoje estaria com ele, que não vejo desde o natal e não sei quando o voltarei a ver. Ia passar o dia a dar-lhe abraços apertados.

Hoje é dia de páscoa. Estaria rodeada de familiares na minha terra natal, entre abraços de reencontros, histórias por contar e a debater os planos futuros em mente.

Hoje, dentro de 5 meses, por esta hora, estaria casada. Não sei se estarei.

Porque os sonhos passaram a ser só sonhos, difíceis de concretizar. Os planos deixaram de ser planos, difíceis de delinear.

Mas a vida continua a ser vida. E nós continuamos presentes, embora com mais dificuldade em decifrar o que nos espera.

E eu hoje estou aqui. Por alguma razão, estou aqui. Acordei a ver o nascer do sol e vi o sol se pôr, por entre o chilrear dos pássaros do jardim. Vi o adolescente de caracóis e a menina chamada Luz. Tive alguém à minha espera em casa e ainda amêndoas de chocolate à mesa. Falei com o pai, a mãe, os irmãos e os avós.

Eu hoje estou aqui. Tenho um pai a quem dou abraços apertados, sempre que posso. Tenho família com quem conversar e estar, mesmo à distância, que me dá mais do que aquilo que imagina. Tenho amigos com quem desabafar, partilhar angústias e conquistas, vivenciar experiências, com quem rir e beber um copo de vinho à sexta-feira à noite, através do ecrã. Tenho alguém com quem quero partilhar a vida e sonhar construir uma família. E tenho saúde que me permite continuar a prestar auxílio àqueles que não a têm.

E hoje estou grata. Pela vida e pelas pessoas que tenho. Hoje é a luz que escolho. Pelos que vivem na escuridão.

 

Diário de uma pandemia 12.04.2020

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