Escudo, arco e flecha
- Carolina Germana
- 12 de mai. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 26 de mai. de 2020

Neste primeiro fim-de-semana de desconfinamento, decidimos sair de Viana. Não me apercebi das saudades que tinha de atravessar a Ponte de Leça e chegar ao Porto.
Tinha feito urgência no dia anterior, 16h. Uma violência. Se eu mandasse, impedia qualquer profissional, fosse de que área fosse de, por vontade própria ou não, trabalhar mais de 12h seguidas sem outras 12 de descanso obrigatório. Pelas mais variadíssimas razões sob as quais não me vou debruçar hoje. Mas eu não mando nada e além de ser das mais novas peças do puzzle, os recursos são poucos nestes tempos que vivemos e por isso não tenho grande hipótese.
Mas até dormi bem e porque era Sábado, acordei às 11h e não às 7h, como é habitual nos dias de semana após 5-6h de sono entre turnos de trabalho. Mas adiante.
Era já hora de almoço quando chegámos ao Porto e sonhávamos com a nossa francesinha que tínhamos já encomendado do Buggati, cervejaria clássica da Rua da Constituição e o primeiro sítio onde comi francesinha na vida. Estranho ver reduzido o movimento da grande cidade e as gentes a circular todas de máscaras postas pelos passeios da Constituição.
Temos a sorte de poder usufruir da casa dos B’s., que está vazia após o seu regresso a casa com o encerramento das faculdades e podermos lá ficar. Mas a chegada a casa foi incompleta, sem os B’s. para nos receber. Por outro lado, a sensação de estar num espaço familiar, mas diferente daquele a que estivemos confinados durante os últimos 2 meses, fez-nos arrepiar. E lá nos deliciámos com a nossa francesinha, que nunca nos soube tão bem, com uma Super Bock a acompanhar. Que maravilha.
Com o som da chuva a cair lá fora, adormecemos de barriga cheia no sofá. Ainda estava cansada. Doía-me o corpo todo, da cabeça aos pés, como acontece frequentemente nos dias pós urgência. Parece que estou de ressaca.
Quando acordámos, já era quase hora de jantar. Entre dúvidas e incertezas, aceitámos o convite de amigos para jantar a sua casa, após um trabalho de grupo para reestruturar o convívio e mantermo-nos todos em segurança. Somos todos ilhéus, vivemos em casal e temos as nossas famílias longe, de maneira que acabamos por ser o mais próximo de família que temos com quem estar. Sapatos à porta, uso de máscara obrigatório e higienização das mãos à chegada. Da vontade imensa de dar abraços apertados, inventámos um novo cumprimento de toque de pés e um sorriso de olhos para matar saudades. Na sala, 3 pequenas mesas improvisadas com distanciamento entre elas, cada uma com o seu patê de atum e taça de frutos secos para entrada. Sushi encomendado, dividido entre todos, copo de vinho na mão e estava na hora da refeição. Todos sentados nos seus lugares estrategicamente colocados, tirámos as máscaras e ali ficámos num convívio caloroso, entre comes e bebes, muito riso e conversa até de madrugada. Se reduziu o risco? Acredito que sim. Se nos soube bem? Pela vida!
Domingo. O dia acordou com sol e eu acordei cheia de vontade de ir à padaria. Temos comido pão congelado todos os dias e eu já sonhava com a regueifa quentinha na mesa de pequeno-almoço. Fato de treino vestido, máscara na cara, saí do portão para o jardim do condomínio, com as suas árvores cheias das folhas verdes vivas da primavera, ao contrário do que vimos a última vez que tínhamos cá estado, em pleno inverno. O tempo passou-nos à frente e nós a pensar que tínhamos metido pausa no tempo. Que ingénuos.
De volta à minha regueifa, já sentada na varanda a apanhar raios de sol. Oiço o movimento dos pratos e talheres a preparar a mesa do almoço nos terraços do rés-de-chão. Oiço as gargalhadas das crianças e as repreensões dos pais. Vejo as senhoras às janelas das suas cozinhas no prédio da frente. Que saudades de sentir vida. Gosto muito de viver em Viana, mas o silêncio da cidade pequena já era demais a meio do caos.
Antes de regressarmos, decidimos ainda circular pela baixa do nosso Porto. Fomos até à ponte D. Luís, sítio que nos é especial, vazia de estrangeiros. Olhámos para a ribeira, sem esplanadas ou animadores de rua. O Douro de gôndolas estacionadas nas bermas e sem barcos a meio do rio. Mas o canto das gaivotas, esse, fez-se sempre ouvir. Pelas ruas, lojas fechadas e um silêncio ensurdecedor. São as gentes desta cidade que a iluminam e mesmo com os raios de sol, os recantos estavam mergulhados em escuridão.
Pusemo-nos de novo a caminho. Desta vez, paragem na foz do Douro. À beira-mar já se viram mais cabeças - em caminhadas, corridas, de patins ou de bicicleta. Mantém-se o distanciamento e muitos estão de máscara posta. O sol foi apagado pelas nuvens e soprava um vento frio e forte. As ondas agitadas pintavam um quadro, ao rebentar no cais do farol. Deixámo-nos lá ficar, a inspirar o ar salgado e a sentir a brisa do mar tocar-nos na cara.
A viagem de regresso foi silenciosa. Com um nó na garganta e um aperto no peito pela realidade não ser igual àquela que deixámos para trás. De coração cheio pelo pão da padaria, pelas folhas verdes das árvores, pelo canto dos pássaros na primavera, pela francesinha, pelos amigos e por termos tido a oportunidade de ir dizer um olá ao nosso Porto.
Amanhã é dia de trabalho. Não há tempo para grandes reflexões. Retomamos posições. Escudo, arca e flecha e voltamos à luta.
Diário de uma pandemia. 11.05.2020
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