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De cara tapada

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 16 de mai. de 2021
  • 4 min de leitura


Estou a chegar a um ponto em que isto começa a ser um problema. Adquiri o hábito de vir respirar profundamente à varanda mal acordo, faça chuva ou faça sol, quase como para encher os pulmões de reserva de ar fresco que me dê para o resto do dia.


De cara tapada. É como estou de segunda a sexta-feira. De manhã à noite. Os segundos para o golo de água ou os minutos para a refeição rápida do almoço, não são suficientes para repor a perda. Chego ao fim da semana saturada, com palpitações e um aperto no peito, sôfrego à procura de ar puro.


São muitas horas.


Esta barreira à necessidade mais básica do ser vivo, começa a tornar-se, de facto, insuportável. Saio da porta de casa em passo acelerado para poder livrar-me disto ao chegar ao carro. E aproveito cada segundo de vidro aberto, a cantar livremente as músicas que passam na rádio, até ao local de trabalho.


Entro de cara tapada e saio de cara tapada. Aliás, como muitos de nós. No entretanto, a interação com colegas de profissão, famílias e doentes e demais intervenientes do nosso dia.


Ao longo do internato médico não estamos confinados e um serviço ou a uma equipa apenas. São vários os colegas, mais velhos e mais novos, com quem nos vamos cruzando. Isso significa que estamos constantemente a conhecer pessoas novas pelo caminho, com quem passamos a grande parte do nosso tempo diário semanal. Desde que a pandemia começou, são já dezenas e dezenas de colegas que por mim passaram e que eu não vou reconhecer quando por mim passarem na rua. Dezenas com quem partilho não só trabalho, mas também vida, que sinto que conheço, mas não vou reconhecer.


Os olhos chegam para a partilha das emoções e chegam para que haja conexão. A partilha de quem somos consegue-se de facto transmitir pelo olhar e ligarmo-nos uns aos outros. Mas não é suficiente.


Todos nós já passámos por esta experiência ao longo destes últimos tempos, que é ir beber um café com alguém que conhecemos de novo. No meu ambiente de trabalho, por vezes esta oportunidade surge apenas semanas ou até meses depois dum primeiro encontro e de vários reencontros diários. Interessante como a forma como idealizamos um rosto desconhecido com base no terço superior da cara se vai criando com o tempo e raramente corresponde à realidade. Quando os dois terços inferiores aparecem, damos por nós a ter um curto-circuito cerebral a tentar fazer com que aquela nova imagem faça correspondência com a pessoa que achamos conhecer. E demora o seu tempo a ir em busca dessa ligação. Também interessante é a forma como imaginamos (quase) sempre um rosto mais harmonioso que aquele que nos surge. A ideia de beleza que o nosso cérebro constrói é a prova viva de que a nossa forma de estar, ser e nos relacionar, é que faz de nós bonitos. Aos poucos e a seu tempo, vamos reconhecendo as linhas deste novo rosto e ligando os pontos com a pessoa que ficámos verdadeiramente a conhecer. E, a seu tempo, deixa de ser um estranho e já nos parece bela de novo.


É tão 2019 isto de conhecermos pessoas de sorriso para sorriso, que já nos esquecemos como se dá o processo. Até ficamos contidos e receosos, de nos mostrarmos ao outro. Eu, pelo menos, sinto que me desnudo. E fico sem jeito. Saber que passamos todos pelo mesmo, não torna a situação mais agradável ou aceitável. É até um pouco perturbador. Perturbador também o facto disto de taparmos o rosto ter virado ícone de moda!


Vemos filmes e séries na televisão e parecem-nos de outros tempos. Que tempos? Arrepia-me a espinha quando alguém entra num espaço fechado e se "esquece" de tirar a máscara do bolso. Quão distorcida estará já a nossa mente, que implicações terá na nossa evolução e que repercussões trará no futuro, individual e socialmente, isto de já não estarmos confortáveis com a nossa liberdade?


Não fomos feitos para isto. Para construirmos relações que no futuro vamos deixar sem cumprimento na rua. Somos seres sociais e o nosso rosto faz parte desta interligação social da nossa espécie e, em particular, da nossa cultura. Queremos ver cair a lágrima e ver rasgar o sorriso. Gostamos de decifrar rostos. Ler rugas de uma vida.


Não fomos feitos para andar de cara tapada. A conter a gargalhada.


Chega o fim-de-semana.


Quero passear, ir dar uma volta, apanhar sol. Quero ir experimentar sabores novos a um restaurante ou deliciar-me de sabores que já conheço. Quero sair. Mas tenho de ir de cara tapada. Ou devo, certo? Mas não quero.


Desisto e acabo a amarrar-me ao sofá. Ou à varanda. Que sorte a minha em ter este cantinho onde me sento durante horas a banhar-me de raios de sol, a ouvir pássaros cantarem primavera e a deixar-me levar pelos meus pensamentos.


E aqui sim, sinto-me enfim, livre.


E aqui fico. Sem a cara tapada.

 

Diário de uma pandemia 16.05.2021

 
 
 

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