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As amigas de sempre.

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 13 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura


Hoje escrevo pelas e para as minhas amigas de sempre.


Praticamente não me lembro da minha vida sem ela e sem a outra. Uma conheci aos 7 meses de vida. Outra aos 10 anos de idade. Elas já se conheciam antes. E somos irmãs desde então.


Gostamos de cavalos, de piano e de fotografia. Conhecemos as músicas todas da Disney. Lemos livros. Vemos filmes. Dançamos. Gostamos de fazer caminhadas, da montanha e do mar. Gostamos de história, de ciência, de política, de arte e de cultura. Gostamos de escrever e de desenhar. Gostamos de conviver, de rir e reunir amigos numa mesa ao jantar. Muitos interesses comuns, uns interesses próprios. Somos três meninas diferentes com caraterísticas que se completam, competências que se somam e fragilidades que se ultrapassam, com colo.


Vivemos verões inteiros coladas. A conversar debaixo das estrelas, a ver séries até de madrugada. Vimos pores do sol na praia e lá ficámos até ser de noite. Vimos nasceres do sol a dançar. Bebemos caipirinhas e mojitos, às vezes de mais.


Estivemos lá no primeiro beijo. No primeiro desgosto amoroso. Na primeira e nas muitas crises emocionais que se seguiram na fase atribulada da adolescência. Nas primeiras saídas à noite. No primeiro cinema com amigos. Na primeira dormida fora de casa.


Acampámos no meio do nada, na praia e no jardim de casa. Viajámos juntas. A destinos de neve e destinos de praia. Gostamos do desconhecido, de aventura e descobrir novas culturas. Gostamos de aprender e de aprofundar conhecimentos.


Desabafamos. Confiamos. Criticamos. Brigamos. Ficamos longe. Ficamos perto. Choramos, rimos, ficamos em silêncio.


Abraçamos, muito.


Mas hoje o abraço é à distância. Porque hoje somos médicas. As três. Hoje estamos na linha da frente da maior pandemia dos últimos 100 anos. Eu trabalho com crianças e adolescentes, ela com adultos e idosos e a outra no bloco com miúdos e graúdos.


Estudámos as três em 3 faculdades de medicina distintas do país. Estudámos anatomia, bioquímica e fisiologia por entre cinemas, festas, convívios e viagens. Vivemos bem.


Queríamos ser médicas desde pequeninas, para podermos mudar o mundo. O sonho de fazer a diferença, de fazer o bem, de ajudar o próximo.


Nós decidimos que íamos ser médicas. E o sonho foi cumprido e é vivido desde o primeiro dia em que entrámos a trabalhar num Hospital. O compromisso, a entrega, a dedicação, a capacidade de mudar a vida de alguém, de salvar, de cuidar, de ajudar o próximo e de fazer o bem existe em fase de pandemia ou fora dela. Só que agora somos “heróis” nas bocas do mundo. A fazer o mesmo que fazíamos desde o primeiro dia em que fomos “doutoras”.


O herói que se entrega ao desconhecido, ao medo e ao risco iminente de ficar doente. O nosso dia-a-dia desde sempre.


Desconhecemos como, que idade e quem é o alguém que nos entra num turno da urgência. Se vai para a sala de emergência ou se tem alta para casa após passada uma receita por uma doença leve. O medo de não conseguir salvar, de não conseguir atenuar a dor, de não conseguir agir da melhor forma. O risco iminente de ficar doente a manipular fluídos, a picar ou a levar com tosse e espirros em cima.


O desconhecido, o medo e o risco de ficar doente existe desde o nosso primeiro dia. Mas nós escolhemos ser médicas.


E não nego que o desconhecido hoje seja superior. É um vírus novo. Pouco sabemos sobre como agir, o que dizer, como orientar e qual a evolução e sequelas a longo prazo desta doença.


Não nego que o medo hoje seja superior. Medo pelo pânico instalado que afeta o raciocínio, pela burocracia, desorganização e decisões tomadas por hierarquias com as quais por vezes não concordamos. Medo por não estar a tratar bem, medo de não estar a oferecer o melhor cuidado. Medo de não salvar. Medo de deixar morrer. Medo de deixar morrer sozinho.


Não nego que o risco de ficar doente seja superior. É um vírus de fácil contágio, que já infetou e matou vários milhares pelo mundo todo. Que circulou e propagou a uma velocidade poucas vezes vista na história da humanidade.


Não nego que a exigência seja superior. Exigência por uma necessidade de conhecimento em constante atualização, exigência física para tolerar turnos de várias horas com equipamentos de proteção que dão muito calor, que dificultam a respiração, que nos impedem de comer ou de beber. Exigência psicológica pela ansiedade, pela pressão, pelas frustrações e inseguranças face ao próprio vírus, às reorganizações dos serviços, ao trabalho de equipa e pelo regresso a casa.


Mas nós escolhemos ser médicas. E há uns dias melhores do que outros, desde o primeiro dia.


Há dias em que nos sentimos heróis, dias em que nos sentimos vilões. Dias que salvamos, dias que perdemos. Dias que cuidamos, dias que erramos. Dias de certezas, dias de dúvidas. Dias de alívio, dias de angústias. Dias de sorrisos, dias de choro.


É inegável que esta é uma época especial. Esta pandemia veio mostrar ao mundo que somos todos iguais. Que somos todos vulneráveis. Que estamos todos numa passagem muito breve por esta vida.


Hoje temos as três mais dúvidas, mais ansiedade, mais dias em baixo. Temos as três mais medo por nós, pelos nossos familiares e amigos e pelos nossos doentes com e sem COVID-19. Mas estamos as três no mesmo barco. E juntas partilhamos experiências, emoções e frustrações. E vamo-nos apoiando e superando, mesmo longe.


E hoje escrevo com orgulho, nela e na outra. Orgulho na forma como enfrentam este nosso dia-a-dia desde o dia um e como ultrapassam as adversidades colocadas nesta fase especial em que vivemos. Orgulho nas mulheres e profissionais que são, na dedicação, entrega e compromisso que assumem diariamente.


E por entre turnos de urgência, enfermarias e blocos operatórios, cá estávamos antes, vamos viver durante e vamos por cá continuar depois desta pandemia.


E quando ela passar, vamos acampar, vamos ver a Mulan, conversar debaixo das estrelas e vamo-nos perder no tempo enquanto nos abraçamos as três de novo.

 

Diário de uma pandemia. 02.04.2020

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