O inimigo que veio para ficar
- Carolina Germana
- 29 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de mai. de 2020

Estamos no final de abril e apercebemo-nos que o inimigo veio para ficar. Que a vida como a conhecemos vai tardar em voltar. E que temos de reaprender a estar, conviver, abraçar, amar. Que temos de pensar em estratégias para continuar a viver de sorriso no rosto, longe daqueles e daquilo que mais gostamos.
Ontem via um vídeo de uma entrevista a Alice Sommer, sobrevivente do Holocausto, que faleceu aos 110 anos em 2014. Depois de ter ouvido os 30 minutos de uma tentativa de resumo da sua vida centenária, deixou-me a refletir sobre alguns pontos que considero chave para lidarmos com adversidades e que me têm ajudado nesta fase conturbada que vivemos. São eles:
Sobrevivência e resiliência
Relatividade
Otimismo
Música
Maternidade
Sobrevivência e resiliência
O primeiro pensamento que surge quando estamos a passar por uma fase mais negra das nossas vidas, é acharmos que não vamos ser capazes de a ultrapassar. É raro nos lembrarmos que nascemos com um instinto, comum a todos os seres vivos, pensantes e não pensantes, que é o instinto da sobrevivência. O instinto de sobrevivência acontece a cada segundo da nossa existência, é instantâneo e espontâneo, faz-nos tomar atitudes e adaptar a circunstâncias, não nos deixando para sempre caídos no chão.
Mas por sermos seres pensantes, sofremos com cada viagem da mente ao futuro incerto e instável. Por outro lado, é também o pensar que nos faz manter a calma diante de situações de stress, regular impulsos, identificar e enfrentar problemas. Esta capacidade de lidar com obstáculos sem desmoronar, chama-se resiliência.
A resiliência não é instintiva. Mas é possível trabalhá-la. Sermos capazes de bloquear entradas desestabilizadoras que nos incapacitam de agir e de viver o presente, exige esforço, mais fácil para uns do que para outros. Mas se conseguirmos trabalhar a resiliência e juntá-la ao instinto de sobrevivência, somos capazes de enfrentar qualquer adversidade que nos coloquem no caminho, sem afundarmos num poço sem fim de escuridão.
Relatividade
Relativizar não é o mesmo que abafar ou anular emoções que se sentem de forma individual. Não é deixar de dar importância àquilo que se vive e se sente de forma própria. Mas relativizar ajuda a analisar problemas.
Permite-nos colocar numa balança um problema em relação a outro e analisar prós e contras de cada um. Sejam eles nossos ou de outros. Relativizar permite-nos olhar em redor e ir de encontro ao que tomamos por garantido e valorizar o que temos. Permite que um problema se torne menos intenso. Permite encurtar o fundo do poço. Permite aprendermos mais e ajudar mais o outro.
Relativizar ajuda a, quando achamos que a nossa vida está má, chegarmos à conclusão que ela não está tão terrível assim.
Otimismo
Há sempre duas versões para cada história: o bem e o mal. A minha geração cresceu a ver filmes da Disney e aprendemos isto desde cedo, sem nunca deixarmos de estar atentos ao enredo. Na grande maioria das vezes, escolhemos focar a atenção no bem.
O mal não desaparece e convivemos com ele diariamente. Demasiadas vezes nos deparamos com entraves, erros ou desilusões que nos tentam sugar baterias. No entanto, é este bater com a cabeça na parede que nos faz desviar dela no próximo encontro.
Ser otimista não significa ver só o bem na pessoa, contexto ou momento. Ser otimista é precisamente saber procurar o bem, quando ele não é evidente, independentemente das circunstâncias. Acreditar que ele existe e não desistir dessa busca.
Música
Não sou nenhuma entendida e muita menos uma expert em música. Sou amante da criação de melodia, de som de instrumentos, da mensagem de canções e da poesia do movimento. Danço, toco e oiço música. Sempre fui apenas amadora, por nunca me ter dedicado a ela como gostaria. Mas a verdade é que a música me acompanha todos os dias, desde que me lembro de mim, nas suas mais diversas formas. Nos discos de vinil do meu pai, nas colunas do amplificador de casa, no leitor de CDs, no MP3, no Ipod. Agora no Spotify. Nos concertos ou numa saída à noite. No piano, na guitarra, no saxofone.
A música acalma, transmite paz e esperança. Transporta consigo mensagens, fazendo-as chegar onde mais nada chega. Faz companhia. Junta pessoas de todas as cores e feitios, envoltas em movimento. Traz vibração, animação e vida. Faz pensar, faz sorrir e faz chorar. A música cola-se a pessoas e momentos e faz-nos viajar no tempo e no espaço. A música dá vida a quem tem pouco com que viver.
Maternidade
Por fim, mas não menos importante, a importância da mãe. Aqui admito que a relatividade me seja difícil de pôr em prática, porque deve haver poucas coisas no mundo piores do que não ter mãe. Acredito que a mãe (ou quem assume o seu papel), tem várias razões para ter trazido ao mundo o seu filho e um dos seus principais objetivos é o de os prepararem para esta luta que é viver.
E nisto tenho sorte, porque com quase 28 anos, tive e tenho presentes a minha mãe e duas avós, perfeitamente lúcidas, com quem tenho debates longos e profundos desde a minha infância sobre o propósito da vida, das relações humanas e da natureza. Com quem aprendo apenas por existirem e que me ensinam sem estarem a pensar ensinar.
Todas elas tiveram histórias de vida e desafios diferentes, mas no fundo são iguais. Ultrapassaram obstáculos, sonharam, lutaram e concretizaram sonhos que em algum ponto da vida, não pensavam conseguir atingir. Amaram e sofreram, caíram e reergueram, adaptaram-se a diferentes circunstâncias, tiraram pedras do caminho e criaram soluções para novos trajetos.
E foram mães. Com todo o desafio que só ser mãe implica.
E é na mãe que vamos buscar conforto quando caímos ao poço. É ela que nos guia, orienta, dá colo e segurança. Que protege, dando espaço,. Que deixa cair, mas ajuda a levantar. Que dá a mão que tira medos e dá o beijo que seca lágrimas e cura feridas.
O inimigo que veio para ficar
Alice Sommer não só viveu como também fez parte de uma das piores histórias da Humanidade. Não só sobreviveu, como conseguiu ver o bem no incalculável mal pelo qual passou, sem guardar rancor. Ultrapassou os inimagináveis obstáculos que lhe foram surgindo. Teve os valores e princípios transmitidos pela sua mãe e passou-os ao seu filho. E tocou. Tocou piano até o final dos seus dias. A sua atitude perante a vida, salvou-a.
Enfrentamos hoje um inimigo que é de facto diferente e é o mais perto que tivemos dum real desafio à própria vida como a conhecemos. O facto de não ser passageiro e de ser imprevisível, coloca-nos questões diárias sobre como melhor atuar, o que fazer, o que não fazer.
Mas aprendamos com Alice Sommer a aceitar os acontecimentos que nos vão surgindo. Confiemos no instinto de sobrevivência, trabalhemos a resiliência, aprendamos a relativizar problemas e a não esquecer de procurar incessantemente pelo bem na pessoa ou circunstância. Deixemos que a música nos conforte, nos anime e nos mova. Busquemos nas nossas mães inspiração e coragem, estejam elas entre nós ou a olhar por nós.
Vamos, dia-a-dia, combater este inimigo que veio para ficar, com as armas que cada um de nós constrói sobre si mesmo. Porque é a nossa atitude perante a vida que nos vai salvar.
Diário de uma pandemia 29.04.2020
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