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Respira e recomeça

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 21 de abr. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 26 de mai. de 2020



Vivo com um bicho-papão em mim. Esse bicho-papão chama-se ansiedade e às vezes é tão mau, que dói.


Dói a barriga, dói a cabeça, dói o peito. O coração bate depressa, o suor não sai das mãos. O ar é pouco e custa a respirar. Chegam as náuseas e as tonturas. As lágrimas correm com facilidade. E por vezes, por vezes, sente-se mesmo que se vai morrer – a sensação de morte iminente. Só a tive uma vez. Um choque elétrico a começar nos pés e a subir até às pontas dos cabelos, com uma visão de luz branca e vontade de vomitar. Estava sozinha num avião pequenino da Portugália, última fila (não gosto de últimas filas). Ia voltar para casa e sabia que estavam ventos fortes na ilha. Foi o suficiente.


Este medo de andar de avião, dos ladrões, de animais, de ficar só, de alguém se magoar, de perder quem amo, de gritos, de confronto, de luta não são de agora e já vem desde pequena.


Lembro-me de estar com cara sofrida, agarrada à barriga, a levar massagens da minha mãe sentada no cadeirão laranja de casa. A minha mãe perguntava-me porquê que doía e eu respondia, com a maior sinceridade, que não sabia porquê.


Esta coisa da ansiedade aparece e não explica porquê que vem. A dor não é igual a quando se parte o dedo mindinho do pé e o coração não bate depressa como quando se vai dar um primeiro beijinho. Às vezes nem se percebe onde é que a dor está, de onde é que ela vem. E outras vezes, não se quer ver.


Ao longo da adolescência, fui aos poucos aprendendo a identificar os sinais que me alertavam para uma eventual crise de ansiedade. Aprendi a lidar com eles e a resolvê-los sozinha. Fui mantendo tudo sob controlo, com umas alturas menos boas que outras. Depois veio a faculdade, aprender a ser crescido, com os desafios que isso implica. Entre essa descoberta, o estudo e muitos bons convívios, passaram os anos com relativa tranquilidade.


Eis que chega o último trimestre de 2015. Estava eu a começar o meu estágio de medicina interna no meu último ano como estudante de medicina, quando recebo uma chamada dum familiar a dizer que a cirurgia a que a minha avó tinha sido submetida, tinha tido complicações. Sem pensar duas vezes, marquei o primeiro comboio para Lisboa.


Os dois meses seguintes foram corridos entre viagens de comboio entre sul e norte, fazer o meu estágio, estruturar a minha tese de mestrado, iniciar o estudo para o famoso Harrison e estar presente e apoiar a minha avó. Nessa altura a minha irmã estava no Cambodja a fazer voluntariado, o meu irmão tinha acabado de entrar na faculdade e os meus pais viviam pela primeira vez a síndrome de ninho vazio.


Voltou a dor no peito e de barriga. As lágrimas corriam sem serem chamadas, onde quer que estivesse, sem razão aparente. As noites preenchidas com pesadelos. Eu mais cansada. Os amigos mais longe. E eu sem grandes conversas, porque não queria chatear ninguém.


No meio disto, a M. desafia-me a ir ter com ela à Tailândia em dezembro. Mais dor de barriga. Só a ideia de me meter num avião para uma viagem de longo curso, sozinha, para um país asiático desconhecido a sós com ela, aterrorizava-me. Por outro lado, algo me puxava para ir e ela não desistia. Mas eu não conseguia marcar a viagem.


Quando, em novembro, surge a notícia dos atentados em Paris, caiu-me tudo. Para Paris, não pensava duas vezes e ia, sem medo. Comecei a refletir sobre a relatividade do medo e daquilo que estava a viver. A M. estava no Cambodja, a viver e a ultrapassar desafios diariamente, muito mais significativos do que aqueles que me estavam a causar angústias. E eu preocupada com o quê?


Marquei a viagem.


Tinha feito direta na noite anterior ao voo porque consegui a proeza de incendiar a minha cozinha de casa e ter de resolver esse problema antes de partir. Mas cheguei ao avião e entrei de mochila às costas. Algumas horas de voo: vi filmes. 8 horas de escala a conhecer o aeroporto de Frankfurt. Mais muitas horas de voo: mais filmes. Não preguei olho. Cheguei ao aeroporto de Bangkok sem ter dormido há 48 horas. Regateei com o taxista para me levar a Khao San Road, onde a M. estava à minha espera. Quando acordei, parecia que me tinha passado um camião em cima.


Depois começou a aventura. Atravessei estradas com enchentes de motas e carros, andei a meio do oceano em barcos que cheiravam a queimado, conduzi mota (que nunca tinha conduzido) e nela descobri e atravessei toda uma ilha com a M.. Perdi-me na floresta, atravessei tempestades. Ouvi ratos sob o teto onde dormiria, fui à meia-noite procurar um sítio alternativo para ficar a meio do nada. Percorri a ilha de Phi-Phi com placas que diziam "tsunami hazard zone". Saltei de uma altura de 4 metros para um lago. Caminhei ao lado de elefantes, dei-lhes comida e tomei banho com eles. Tive uma cobra de 3 metros, grande e gorda, nos ombros e a enrolar-se em mim. Segurei em bichos estranhos. Comi refeições diferentes.


E o medo foi-se. A viagem de regresso foi das mais tranquilas que tivera até então, mesmo com turbulências e poços de ar pelo caminho.


O último trimestre de 2015 foi toda uma viagem de superação. Entre o medo de perder alguém próximo, da incerteza do dia de amanhã, de viajar sozinha, de andar de avião, de estar só. O medo de me perder. O medo dos animais, de andar de mota, dos desastres naturais, de chuvas torrenciais e de trovões. O medo do desconhecido.


Venci medos e vivi vida.


E veio 2016. A minha avó recuperou e ficou bem. Eu apresentei a minha Tese de Mestrado, acabei o meu curso e fiz o meu exame de acesso à especialidade. Fui uma semana a Paris, um ano depois dos atentados. E voltei a viajar para a Ásia, ter de novo com a M. que acabou por lá ficar mais um ano.


Desde então tem sido uma montanha russa, com alguns loops de adrenalina pelo meio para me fazer perder o controlo, fazer-me respirar fundo e recomeçar.


Estamos num momento alto. Porque este último mês e meio veio de novo desafiar os meus limites e tem sido um loop constante. E este desencadeante, que coloca incerto o dia de amanhã e os vindouros, é desconhecido, o que dificulta o processo. Mas não deixa de ser algo que não é controlável, como uma viagem de avião. E estas não valem a pena a nossa perda de tempo com medo, a tentar decifrá-las ou modificá-las. Conseguimos, no entanto, controlar as pessoas que nos rodeiam, os espaços em que estamos, as atividades que fazemos, o nosso corpo e mente. E é nessas variáveis que me tento concentrar todos os dias para tentar combater e ultrapassar o incontrolável.


Às vezes parece que não conseguimos voltar à linha reta quando nos despistamos. Mas temos de tentar controlar na curva, adaptar aos drifts e enfrentar o medo com coragem. Identificar as pedras no caminho, inventar e criar soluções para as retirar. E aí sim, quando tomamos novamente as rédeas sobre nós próprios, fica novamente tudo bem.


Respira. E recomeça.

 

Diário de uma pandemia 21.04.2020

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