Parte I - No sítio certo
- Carolina Germana
- 26 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Dia das colocações, setembro 2010. Estava já em Lisboa com a minha mãe e irmã. Sentadas à frente do computador, confirma-se. Entrei na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Risos, saltos e abraços. Felicidade da mais pura que há. Tinha conseguido. Siga para o norte!
Carro cheio até ao teto, paragem na estação de serviço de Mealhada, e o destino era o Porto. Arranjar um apartamento, mobilá-lo, contratos de internet, água e luz. Sorte a minha em ter mãe guerreira que só parou quando me instalou em casa pronta depois de três dias intensivos com decoração IKEA, minimalista. Até colega de casa arranjei nesse tempo, conhecida da minha infância e da terra natal do meu avô, que tinha acabado também de entrar na mesma faculdade que eu. Não a via há muitos anos. Sabia que tínhamos convivido e estado juntas em pequeninas e pouco mais. Mal sabíamos nós que se contruiria ali uma amizade que ficaria para a vida.
Instaladas e entusiasmadas por começar as nossas aulas de anatomia, eis que chega a primeira fase de exames. Eu que estava habituada a cumprir objetivos académicos sem grande esforço, levei com um belo balde de água fria. Penso que válido para todos os meninos e meninas de 18-20’s no secundário, que entram na FMUP e se apercebem que afinal não são pequenos génios. Existiam, alguns, que se contavam pelos dedos. Nunca fui um deles. De repente o alvo passa a ser o 9,5 e “passar” passa a ser vitória.
Depois de três anos a estudar teoria em salas de aula, entramos nos chamados “anos clínicos”. E aí sim, temos finalmente o primeiro contacto com o que será o resto da nossa vida. Lembro-me da primeira cadeira/estágio que tive no meu 4º ano - Ortopedia. Estava eu e a L., entusiasmadíssimas, finalmente de bata branca e estetoscópio no bolso. Mas ortopedista não usa estetoscópio e mandaram-nos logo em tom de gozo, arrumar aquilo na gaveta. Até tinham afixado no gabinete de urgência “ortopedista não é médico”. E nós tristes.
As cadeiras e anos seguintes fizeram-se com alguma leveza. Já me sentia finalmente na minha praia: o contacto com a clínica, com o hospital, com os doentes, com as equipas médicas e de enfermagem; a consulta, o internamento, a urgência, o bloco.
Nesses anos aprendemos a colher as chamadas “anamneses” - histórias completas sobre a pessoa que temos de conhecer para a podermos tratar. A razão que a levou a procurar ajuda médica, o que sente e o que não sente, saber o seu passado e explorar todo o contexto biopsicossocial e familiar. Aprender a fazer perguntas chaves, a dirigir uma conversa para aquilo que importa saber para formular hipóteses. Aprender a fazer um exame físico completo, a sermos observadores natos e a não deixarmos escapar nada, da cabeça aos pés. Apurar a audição para identificar os diferentes sons do coração e dos pulmões. Apurar o tato para detetar texturas diferentes ou massas escondidas. Juntar as informações obtidas com o conhecimento teórico adquirido previamente e raciocinar. Pensar nas hipóteses de diagnóstico, discuti-las, justificá-las e chegar a conclusões sobre a orientação e eventual tratamento.
Observamos a vida de cirurgião, concentrado e focado na precisão do movimento. A abrir e a fechar, a remexer e a explorar. Corta aqui, tira ali, remove isto, coloca aquilo. E nós de olhar atento e curioso, em bicos dos pés, a tentar ver cada passo por entre cabeças, braços, mãos e material cirúrgico. A admirar aquela dança entre ser inanimado e seu salvador.
Vemos a entrega e dedicação dos profissionais aos seus doentes. Confirmamos que podemos realmente modificar e alterar o curso de vida de uma pessoa. De tratá-la e curá-la. De dar conforto, de dar a mão, de dar esperança, de dar melhor qualidade de vida. E vemos o agradecimento nos olhos de quem deposita a confiança em nós.
Era isto. Era definitivamente isto.
Estava no sítio certo.
O interno escreve - 22.05.2020
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