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O privilégio de te ter

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 29 de jun. de 2022
  • 3 min de leitura


Na transição do primeiro para o segundo trimestre de gravidez, ainda a sentir-me muito só neste percurso, a minha mãe disse-me que, quando estava grávida de mim, só pensava no privilégio que era ter vida a crescer dentro dela e do privilégio que era ser ela a senti-lo acontecer, de forma tão intensa e única. De ser ela a ser capaz de proporcionar tal acontecimento.


Não sentia ainda o privilégio. Ainda vinha ferida do primeiro trimestre. Que privilégio? O de inchar, ter acne, ter de ir às compras arranjar roupa que me servisse, ter náuseas, andar 100 metros e parecer ter corrido uma maratona, estar constantemente cansada sem conseguir ter energia para nada e ter de continuar a vida normal, como se nada fosse? De ninguém olhar para mim e ver-me grávida, apesar de todas as transformações que sentia? De não ter ninguém que me compreendesse ou que estivesse a sentir o mesmo que eu?


Não me emocionei a ver a primeira ecografia oficial do nosso bebé. Soube que estava bem e fiquei apenas aliviada. Senti-me triste por isso. Qual o privilégio de sentir-me distante de todos sem que ninguém à minha volta se entusiasmasse ou se conseguisse conectar àquilo que se estava a passar - que eu tinha recebido a notícia do sonho da minha vida e que estava nesta angústia de não estar aos saltos de felicidade por isso?


As hormonas dão cabo de nós. Que privilégio? Pensava eu.


Soube naquele dia, depois de conversar com a minha mãe, que tinha de mudar o chip. Mas vinha ferida e por isso não sabia como dar a volta.


Mas o tempo encarregou-se de o fazer com a naturalidade que fui encarando todo este processo, aos poucos.


O cansaço e as náuseas sumiram-se como num estalar de dedos e a montanha russa hormonal parece ter abrandado. E como que numa viragem de página, já mais tranquila e consciente das minhas emoções, vi-te crescer através de mim. A barriga começou a esticar e triplicou de tamanho. Ganhei muito peso mas já não me afligiu. Comecei a sentir-te mexer, cada vez com mais regularidade e intensidade. A responderes à minha voz, aos meus movimentos e à comida que dividia contigo.


De repente, não me senti mais sozinha. Quis partilhar estes momentos com os que me rodeavam, mas já não senti mais a necessidade de validação ou de entusiasmo de outros. De repente, sentir-te comigo já era suficiente. Quando estamos sós, dançamos e canto para ti canções inventadas e mal cantadas por mim. Quando estamos sós, ponho-te a ouvir piano enquanto te faço uma massagem com o creme que faz da minha barriga o lugar mais macio do meu corpo e o teto da tua casa. Quando estamos sós, conversamos sobre ti, sobre mim, sobre a nossa pequena família a formar-se. Falamos sobre gestão de emoções e toleras as minhas gargalhadas mas também os meus soluços por entre lágrimas que por razões várias deves em quando foram aparecendo.


E de repente, tornou-se real o que dizia a minha mãe. Não a realidade de te ter, pois essa já eu sinto desde o momento em que vi os dois riscos no teste de gravidez que fiz na manhã seguinte a uma noite de choro inconsolável sem nexo. Mas a realidade do privilégio que é fazer crescer vida dentro de mim. De ser eu a poder carregá-la, aconchegá-la, vê-la e senti-la acontecer. E de saber que foi fruto da conjugação de um amor que cresceu comigo.


No dia da segunda ecografia oficial, lá estávamos nós a ver o nosso bebé. Não foi alívio, não senti nenhuma emoção forte, não deu direito a lágrimas. Senti-me apenas plena, cheia de tudo o que ansiosamente aguardava. O momento em que me senti só bem por te ter.


Escrevo enquanto te sinto rodopiar na minha barriga e vejo-a mudar de forma quando a chutas num canto. E sinto-me feliz. Feliz por estar a realizar este sonho e de ter encontrado finalmente o privilégio de te ver crescer e ver-me crescer contigo, em todos os sentidos.


Estamos quase no final do segundo trimestre e este foi um de aprendizagem sobre o privilégio que é criar-te, filho. Uma aprendizagem sobre ti. Sobre mim. Sobre nós os três enquanto família.


E só agora começou...


 

Diário de bordo 29.06.2022


Fotografia tirada pela amiga Mónica Jardim no Seixal, Ilha da Madeira.

 
 
 

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