Mãe pediatra/pediatra Mãe
- Carolina Germana
- 2 de set. de 2023
- 4 min de leitura

Está silêncio em casa. Acabo de deitar o M. no berço e o A. adormeceu no sofá. Vim para o alpendre de casa, ouvir o vento bater nas folhas das árvores e o som do mocho piar. Tenho dois cavalos no meu radar que se passeiam no pasto, relinchando de vez em quando, dando o ar de sua graça.
Adormeci tranquilamente o meu filho. Depois de meses a batalhar contra o sono, sinto que a nossa relação com o dormir se está a tornar cada vez melhor. Chegar do trabalho e ter essa "tarefa" para fazer já não é mais um peso, mas um prazer. Deitá-lo não é mais fonte de ansiedade, mas um momento de paz ao vê-lo descansar.
Hoje cheguei de (mais) um dia de trabalho intenso. Emocionalmente falando e não porque tenha sido um de grandes afazeres, nem um daqueles em que não se pára um segundo. Não foi um dia complicado do ponto de vista técnico. Nem sinto que tenha deixado algo por fazer ou que tenha vindo na viagem até casa a pensar que podia ter feito de outra forma. Há dias assim. Mas hoje não. Hoje foi relativamente calmo nesse sentido. Para mim. Para os pais da criança que ficou à minha responsabilidade, tudo menos isso. Não vou entrar em pormenores do caso, mas foi um daqueles em que se tem de dar más notícias de uma doença com mau prognóstico, identificada numa criança previamente saudável, cuja vida pregou uma rasteira.
Ser mãe transformou a minha forma de viver a medicina. Particularmente porque a medicina que escolhi foi a pediatria. E viver a dor destes pais, parte-me o coração todos os dias.
Ontem inscrevi-me no meu exame de saída de especialidade. Não quero acreditar que está a chegar ao fim. Faltam oficialmente quatro meses para acabar a minha formação. Se não tivesse sido mãe, já a tinha acabado e hoje não estaria a escrever este texto. Decidir ser mãe a meio do internato foi uma decisão ponderada. Sabia que ia ter consequências, nomeadamente no atraso do seu término, o facto de interromper a minha formação a meio, estar um ano longe da prática clínica. Sabia que ia ser provavelmente mais difícil ter tempo livre para escrever relatórios, dedicar-me a trabalhos, estar focada no estudo.
Mas havia uma certeza absoluta, desde sempre. Que era a de que queria ser mãe. E esperar pelo momento certo na vida para o fazer, parecia-me algo inatingível. Aproximava-me dos 30 e o relógio biológico estava a ressoar há pelo menos um par de anos, tic-tac tic-tac. O timing do teste positivo era impossível de prever. Fosse em que altura fosse, não seria o fim do internato que me ia impedir este sonho maior que tinha, de ser mãe.
E assim foi. Acabei por deixar seis meses de formação por acabar. Faltavam só seis meses e afastei-me um ano até os poder reiniciar. E agora que já estou de novo na corrida, já só quero atingir a meta. Sinto que voltei à pista com uma visão tão diferente daquilo que era eu como interna antes de ser mãe. Tenho ultrapassado tantos desafios tão grandes na minha vida pessoal e neste crescimento e auto conhecimento da maternidade, que ser interna deixou de ser a missão mais exigente na minha vida. E isto permite relativizar tudo, certo?
Daqui a uns meses, sou especialista em pediatria. E, apesar deste regresso ao trabalho mais atribulado, mais pesado, mais intenso, sinto-me cada vez mais confiante e segura de que já estou preparada para este fim de cena. Para este revirar de página. Sinto também que ter parado um ano para ser mãe só me acrescentou. E de que me orgulharei ao dizer, quando me perguntarem, o porquê de estar a acabar apenas um ano depois do esperado.
Ser mãe tem sido a minha maior aprendizagem. Porque é muito mais do que aprender a trocar fraldas, vestir roupas em braços dançantes ou pensar no enxoval necessário para equipar a casa. É uma jornada de auto-conhecimento sem igual. Sobre conhecer o mundo com inocência, com novidade. É sobre mergulhar no nosso eu mais pequenino e reaprender a brincar, rir, entreter. É sobre apurar os sentidos, no toque de um mimo, no agarrar de uma mão num dedo, no cheiro do cabelo, no ouvir de um apelo em forma de choramingo. Na observação das covinhas, sinais, perfeições de um ser pequenino. É sobre não querer passar traumas e sobre te perderes na forma de transmitir um amor que é tão grande, que achas sempre que estás a fazê-lo de forma insuficiente. É sobre aprender a regular as nossas emoções. Olhar em nosso redor e procurar gatilhos que queremos silenciar. Gerir a culpa que surge sem pensar. Aprender a comunicar por expressões, jeitos, sorrisos e olhares que se fundem num só.
Ser mãe é aprender tanto todos os dias, para o resto da nossa vida.
Ser mãe faz-me querer ser melhor enquanto médica, enquanto pediatra. E ser médica pediatra faz-me estar grata todos os dias pela saúde do meu filho, sem nunca a ter como garantida. Abraçando-o à chegada a casa depois de sorrir e se atirar disparado para o meu colo, retribuindo este amor maior.
É no silêncio desta casa que me vejo de novo. Que incrível a jornada que tem sido a minha vida até hoje, quando a olho atentamente. Quando não me deixo abafar pelo ruído circundante. Quando oiço o vento e o relinchar dos cavalos.
Volto para dentro. Devo estar quase a ouvir o chamamento para um estender de braços. Para voltar a ser colo e alimento, diversão e alento.
Amanhã estarei a ser médica, num sábado onde poderia ser família. Mas vou trabalhar para um lugar onde, amanhã, estarão pais e mães que poderiam ser felizes a passear nos parques de jardim ou a dar mergulhos de mar com os seus filhos. E que, em vez disso, estão num dos sítios mais aterradores de um hospital, a depositar esperança nos profissionais de saúde que ali estão ao serviço.
Amanhã, espero que seja possível dar-lhes a segurança que precisam para voltar a ter fé de que um dia, vão voltar a ser família debaixo de guarda-sol a construir castelos na areia.
Amanhã, espero regressar a casa, no final duma maratona de doze horas, para me deitar ao lado do meu filhote e adormecê-lo calmamente, no conforto da sua cama, na tranquilidade do nosso lar.
Conversas de sesta 1/9/2023
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