Hoje foi dia de sofá
- Carolina Germana
- 16 de abr. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de mai. de 2020

Hoje foi dia de sofá.
Hoje não há tons laranja a pintar o céu nem os pássaros cantam nas árvores. Hoje oiço o som tranquilizador da chuva contra o assobiar agudo e tenebroso do vento. Mas o céu cinzento deixa uma aberta no horizonte e permite olhar o mar agitado ao longe. Hoje vejo o rebentar das ondas através da janela, conseguindo imaginar o som e o cheiro que de lá vem, não fosse eu natural de ilhéu.
Hoje foi o meu primeiro dia de sofá, depois de uma semana intensa de trabalho.
Depois de um Inverno pesado, com muitos doentes diários, esta pandemia trouxe sossego à Pediatria, se falarmos em números. Os números cansam. Mas é indiscutível que trabalhar com um doente num contexto de urgência neste momento, cansa mais.
Cansa mais porque se dormem mal as noites e se sai de casa já ansioso.
Porque se inspira e expira contra uma barreira durante um turno de 8 ou 12 horas.
Porque temos regras e passos para vestir e despir equipamentos, que ao falharmos, corremos riscos para nós e para os nossos lá fora.
Porque beber, comer e ir à casa-de-banho tem limitações.
Porque ver doentes, dói fisicamente.
Porque se está à espera que da triagem chegue um doente mais grave, porque os leves estão em casa e evitam procurar cuidados.
Porque a interação, comunicação, observação e intervenção são diferentes do que para nós era já natural.
Porque temos dificuldade em transmitir segurança e há perguntas que ficam sem resposta.
Porque há medo no olhar dos pais com lágrimas que escorrem sem pedir.
Hoje estou no sofá e amanhã também vou estar.
E de repente, sinto-me vazia. Amanhã não vou ver doentes, mas também não vou passear, não vou viajar, não vou fazer as malas, não vou reunir com amigos.
Vivemos nesta ânsia de pensar no dia de amanhã. Os dias planeados, preenchidos, cheios. Preocupações, deveres, prazos, avaliações.
Amanhã é segunda: começa a semana - ver doentes, estudar, preparar consultas.
Amanhã é terça: estou a fazer urgência - saio às 8h, chego às 24h, não vejo a luz do dia.
Amanhã é quarta: vou dar consulta de manhã, tenho de escrever um artigo e limpar a casa.
Amanhã é quinta: tenho de preparar o trabalho para apresentar sexta
Amanhã é sexta: vou apresentar o trabalho, tenho de fazer as malas e fazer a viagem para o Porto, para Lisboa, para uma escapadinha cá dentro, para uma viagem lá fora.
Amanhã é sábado: que bom, finalmente - mas tenho de aproveitar este dia de folga e fazer algo de útil com ele; tenho de fazer a caminhada, ler o livro, jantar fora, reunir com amigos, ir beber um copo, dançar toda a noite.
Amanhã é domingo: vou estar cansada de tudo o que estive a tentar fazer no sábado - vou deixar-me estar no sofá e ver um filme; oh não, tenho de voltar para casa, ir ao supermercado, preparar a semana.
Amanhã é segunda. Recomeça.
Que sensação estranha, esta. De não estar preocupada com o amanhã.
Que sensação boa esta, de me deixar estar sem planos.
Que saudade esta, de os ter.
Que conflito este, entre o gosto pelo trabalho, a necessidade de descansar e de estar livre de planos e deveres, e a vontade de sair, de passear, de viajar, de conviver e de abraçar.
Anoiteceu. Está silêncio. Nem vento, nem chuva. Vou-me deixar estar, no sofá.
Diário de uma pandemia 16.04.2020
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