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Está sol.

  • Foto do escritor: Carolina Germana
    Carolina Germana
  • 13 de abr. de 2020
  • 3 min de leitura


Está sol. Há duas semanas que está sol em Viana do Castelo. A primavera faz-se sentir. O céu está azul. Os pássaros cantam de manhã à noite. Os prados têm vários tons de verde. As flores começam a aparecer nas árvores.


Saí da minha ilha há 10 anos e acabei por vir viver para esta cidade de mar há 2. Daqui a uns meses voltava para o Porto. Mas neste momento, neste preciso momento, estou sentada na minha varanda a ver o sol mergulhar no mar. Tenho uma vista de 180 graus para o horizonte. O mar está calmo, parece lago. Oiço os pássaros a cantar do nascer ao pôr do sol. Não param de chilrear. É o meu som de fundo. Passam em bandos a rasgar o céu sem nuvens. À minha volta oiço as cozinhas dos vizinhos em movimento, a preparar os seus jantares. E no meu spotify, toca piano. Está tão tranquilo este fim de tarde.


Ontem estive a trabalhar. Cheguei a casa com a marca da máscara na cara e cansada. Mais um dia de muitas emoções, mudanças e burocracias.


Ontem vi o M., um menino de 9 anos com trissomia 21, com uma série de doenças de base, mas com uma alegria e uma bondade imensa. Chegou a uma sala vazia e eu apareci para o chamar, disfarçada dos pés à cabeça com bata, toca, luvas, viseira e uma máscara bico de pato. Irreconhecível como gente. Chamei o M.. Ele respondeu com ar de pânico: "Eu?"

Eu disse-lhe que não. Que queria era observar a mãe, se ele podia entrar com ela, para ela não ter medo. Depois de examinar a mãe e de ele ver que eu não fazia maldades, perguntei se podia agora vê-lo. Com ar duvidoso, respondeu que sim. Observei-o, por entre um ou outro desvio e um olhar que analisava cada passo que eu dava, com sucesso.


Expliquei depois ao M. que ele teria de ir levar uma pica à Enfermeira J. Ajudei a segurar no M. enquanto ele fugia da agulha e se tentava picar, porque dói. Conseguimos. E ele, por entre lágrimas, só nos questionou: "Já está?". Nós respondemos que sim e ele ficou aliviado.


Uns minutos mais tarde ele chama-me do quarto.. "Doutora". Lá fui. Ele perguntou-me o nome. "Carolina", disse eu. Ao que ele responde: "Calina, anda cá." Eu avancei, mas não me aproximei muito. Ele voltou a repetir, "Calina, anda cá". Lá me juntei pertinho. Ele aponta serenamente para o cateter que tinha na mão e diz "isto dói". Eu pus a minha mão em cima do cateter e disse-lhe "não dói, só faz impressão, e é para te pôr bom". Ele respondeu-me: "Está bem, Calina". E ficou a olhar para o seu cateter envolto em ligaduras e adesivos, sem questionar.


Quando chegou a hora de o levar para o quarto fechado onde teria de ficar a passar a noite, quis que eu fosse com ele e lá fomos de mãos dadas. O quarto está vazio. Não tem brinquedos. São quatro paredes e uma porta com uma pequena janela sem vista. Quando o deixei, ele ainda me disse "obigado Calina".


Isto de trabalhar com miúdos, tem muito que se lhe diga. Miúdos doentes, mais ainda. Tudo fica relativo. As nossas tristezas, angústias e dúvidas ficam reduzidas a nada, porque todos os males se diminuem quando vês uma criança doente a brincar. A ingenuidade que os deixa felizes. As incertezas que se acertam quando eles te ensinam com simplicidade.

Sim, o M. pôs-me a pensar. Que poder têm as crianças de compreender aquilo que os mais velhos teimam em não querer aceitar. Que poder é este de aceitar a dor, na esperança de ficar bom. Que poder é este da bondade genuína. Da espontaneidade. Que poder é este de viver com doença, sorrir e fazer sorrir os que as rodeiam em tempos difíceis.


Partilhei horas com o M. naquele espaço, enquanto aguardavamos análises e raio-X, por entre burocracias e tempos de espera. O M. fez-me sorrir tantas vezes naquele meu turno na ala Covid. Um sorriso escondido por detrás duma máscara que torna difícil respirar. Mas o sorriso dos olhos ainda se vê atrás das viseiras. E assim comunicámos os dois durante aquelas horas. Bonita a forma como a criança toca no coração. Como ensina e como acalma.


O M. vai ficar bom.


E o sol já desapareceu. O céu está rosa. O mar violeta. O vento do litoral não perdoa e começa a ficar frio. Vou para o quentinho da minha casa, no conforto do meu sofá. E amanhã, por todos os pequenos M. deste mundo, estou lá de novo. A sorrir com os olhos para e por estas crianças que nos enchem a alma todos os dias, mesmo doentes.


 

Diário de uma pandemia. 28.03.2020

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